"O Dicionário Encantado"
Pensava em escrever um livro com este título: "O Dicionário Encantado". Não que eu fosse capaz de fazê-lo. Era, sim, mais um fruto do meu ócio pervertido-criativo que, apesar do sempre infindável trabalho acumulado, não me abandona. Procurei nos escaninhos da memória, e em arquivos vários, como a internet, para saber se algum lunático como eu já o havia escrito. Não encontrei.
Com certeza, concordarão comigo, o ato de escrever e contar histórias já é, por si mesmo, algo encantado. E há muita literatura sobre livros mágicos, encantamentos, pessoas e coisas que saltam de páginas e ganham vida própria. Mas, eu procurava, tão simplesmente, pelo título, tal como assinalei. Sobre qual seria o enredo, propriamente dito, não fazia, e não faço, a menor ideia.
A tarefa a que me propus induziu-me a percorrer algumas palavras deitadas em um dicionário clássico da língua portuguesa de que dispunha. Segui o abecedário e tudo ia bem: do "a" até "ababadar". Até passei, sem muita aflição, por "abá-baxé-de-xangô". É verdade, que neste caso, tive vertigens e pensei ter ouvido vozes a me chamar, sem que houvesse alguém por perto. Mas passou e continuei no propósito.
A seguir, entretanto, encontrei-me com a palavra "ababelado". Pelas barbas de Merlin: o caos se instalou!
O dicionário tremia em minhas mãos. Tive que segurá-lo com muita força. O quarto virou de
“ɐɔǝqɐɔ-ɐʇuod”: objetos voando por todos os lados; uma algazarra de vozes vindas dos livros, que abriam-se sozinhos, e, por assim dizer, liam-se, misturando todas as línguas; canetas abrindo cadernos a escrever por conta própria; uma caixa de tintas e pincéis se abriu e começaram a pintar aqui e acolá. Balbúrdia, tumulto, confusão: a Torre de Babel desabara sobre mim.
Não havia como conter e ordenar os pensamentos. Imaginei coisas tão estapafúrdias que o pudor não me permite enunciar. Não suportando mais, em um momento de rara felicidade, no meio daquele descontrole todo, lembrei de algo que já sabia, e o momento confirmara: as palavras têm poder. E resolvi tentar algo radical.
Segurei o dicionário firmemente e fui procurando: s...si...sil... encontrei! Com a força que me restava, gritei:
─ Silêncio!
─ ...
As vozes se calaram. Então, repetindo o mesmo procedimento, fui procurando e lendo, em alto e bom som, palavras, tais como: paz, ternura, harmonia, amor... e pouco a pouco as coisas foram voltando ao normal. Fechei o dicionário e o recoloquei em seu lugar.
Desisti, por enquanto, de escrever tal livro. Até, pelo menos, que eu encontre uma forma segura de escrevê-lo. Nem quero imaginar se ao invés de obedecer a convencional ordem alfabética eu tivesse começado por palavras como "guerra", "holocausto" ou "loucura", por exemplo. O dicionário é um lugar perigoso. É preciso saber escolher muito bem as palavras e tratá-las com todo respeito.
Contudo, desta experiência angustiante, restou-me um consolo: se, por um lado, eu não consegui escrever uma linha sequer de "O Dicionário Encantado", descobri que ele existia. E este dicionário era o meu.
Cláudio Rangel, 22/11/2012